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Ativistas preparam "missão maior" à Faixa de Gaza, diz Thiago Ávila

"Violência não vai nos parar", diz brasileiro em entrevista exclusiva

17/06/2025 às 08h48
Por: Redação Fonte: Agência Brasil
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© Paulo Pinto/Agência Brasil
© Paulo Pinto/Agência Brasil

Integrante da Flotilha da Liberdade, que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza quando foi interceptada pelas forças de segurança israelenses há cerca de uma semana, o brasileiro Thiago Ávila informou que o grupo de ativistas prepara uma nova missão para assistência aos palestinos da região.

"Vamos continuar tentando romper o cerco ilegal de Israel sobre Gaza, levar alimentos e medicamentos e abrir um corredor humanitário dos povos. Para nós, enquanto tiver crianças morrendo de fome em Gaza, essa é a missão fundamental. Já temos um novo barco chamado Handala, ele está quase pronto para ir", disse o ativista em entrevista exclusiva à Agência Brasil .

"Estamos tentando arrumar novos barcos para uma missão maior desta vez. Queremos que seja sempre assim: se Israel atacar uma missão nossa, que saiba que a próxima missão será maior. E que eles entendam que a violência não vai nos parar", completou.

Na entrevista, ele falou sobre a truculência das forças israelenses desde a interceptação do barco em águas internacionais até o que classificou de sequestro dos 12 ativistas estrangeiros que estavam a bordo . Ele denunciou ainda situações de violência e abuso de poder às quais a população da Faixa de Gaza é submetida de forma constante.

“Tudo o que a gente queria era não ser assassinado naquele momento. Nos mantiveram por mais de 20 horas sequestrados dentro do nosso próprio navio, eles estavam fortemente armados”, contou.

A embarcação, que foi interceptada em 9 de junho, partiu da Itália levando alimentos e medicamentos, com o objetivo de furar um bloqueio imposto por Israel ao território palestino, que há mais de três meses impõe fome a quase 2 milhões de pessoas. Thiago chegou ao Brasil na manhã da última sexta-feira (13) e foi recebido por familiares e apoiadores no Aeroporto Internacional de São Paulo, após sua prisão em Israel.

Segundo os relatos, alguns ativistas, incluindo o brasileiro, foram mantidos em um ambiente com ratos, baratas e percevejos, além de receberem uma água turva e com mau odor para beber. Até a unidade prisional, foram levados em veículos com vidros cobertos e no escuro. “As pessoas estavam amontoadas, não tinham acesso a banheiro, uma delas urinou no veículo. Foi um processo degradante de transporte, com constantes ameaças e violência psicológica”, lembrou Thiago.

“Era noite. Tinha apenas alguns buraquinhos de falha na tinta da janela que ficava atrás de nós. Então dava para perceber que tinha alguma luz ou um soldado se aproximando, por exemplo, mas a gente não conseguia ver detalhes a ponto de se localizar”, contou. Em protesto contra a detenção, que denunciou ser um sequestro, Thiago ficou em greve de fome. Como punição , foi levado a uma cela solitária, além de sofrer ameaças de que não voltaria ao Brasil nem sairia dali caso não interrompesse a greve.

Ele avalia que a missão da Flotilha da Liberdade ajudou a dar visibilidade às prisões ilegais e torturas cometidas contra os palestinos, a quem classificou de reféns. Segundo a Associação de Apoio a Prisioneiros e Direitos Humanos (Addameer) , atualmente Israel mantém 10,4 mil prisioneiros palestinos.

No mês de março deste ano, o brasileiro-palestino Walid Khaled Abdallah, de 17 anos, morreu em uma prisão israelense após maus-tratos . Segundo informações da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), a morte foi causada por fome e desidratação prolongadas, além da falta de cuidados médicos. A Fepal relatou que a prisão onde o jovem estava é conhecida pelo uso de tortura com choques elétricos, espancamentos e privação de comida.

O Monitor Euro-Med de Direitos Humanos, organização independente baseada na Suíça, reconheceu a tortura sistemática e as atrocidades sofridas pelos palestinos nas prisões israelenses. Diante disso, a entidade avalia que há flagrante violação das normas imperativas do direito internacional. “Essa política faz parte do crime de genocídio de Israel, que visa destruir o povo palestino na Faixa de Gaza, total ou parcialmente, enfraquecendo os fundamentos de sua sobrevivência e levando-o à submissão ou à extinção”, divulgou a organização em nota .

A prisão de Thiago Ávila é tratada como crime de guerra pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) do Brasil, que pediu ao governo brasileiro a suspensão das relações diplomáticas e comerciais com Tel Aviv. O Itamaraty considerou que houve violação do direito internacional e pediu, na ocasião, a libertação do ativista .

Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil: Quais as ilegalidades cometidas por Israel contra os ativistas que estavam na embarcação da Flotilha da Liberdade?
Thiago Ávila: A maior violação que aconteceu, neste momento do sequestro, foi pelo fato de nós estarmos a mais de 100 milhas náuticas de Gaza, portanto em águas internacionais. Israel não tem jurisdição para interceptar qualquer embarcação em águas internacionais. Mesmo que a gente já estivesse em Gaza, também não teria jurisdição porque é o território marítimo palestino. Houve também uma violação das decisões liminares da Corte Internacional de Justiça [CIJ] , no processo que a África do Sul abriu contra Israel pelo crime de genocídio, que proibiam Israel ou qualquer outro país de deter ajuda humanitária que tentasse chegar a Gaza. Ao interceptar nossa missão, Israel não apenas violou acordos internacionais de legislação marítima e de navegação, como também uma decisão da CIJ, a maior instância jurídica do mundo, do sistema das Nações Unidas.

Uma missão humanitária – carregando alimentos, medicamentos, próteses para crianças amputadas, muletas, filtros de água –, não violenta no seu princípio e na sua forma de agir ao longo de toda missão, foi atacada violentamente por Israel. Primeiro por drones, em um processo de guerra cibernética, que interceptou o sistema de navegação e interceptou parcialmente nossa comunicação com o mundo exterior. Depois os drones começaram a jogar elementos químicos sobre nós, tintas e um pó preto que até hoje a gente não conseguiu identificar. Depois a abordagem violenta e a chegada para tomada do nosso barco, o sequestro em águas internacionais.

Nos mantiveram por mais de 20 horas sequestrados dentro do nosso próprio navio, sendo levados para um destino diferente de onde iríamos: o Porto de Ashdod em Israel. Nossos pertences, equipamentos eletrônicos e o próprio barco foram todos tomados por eles, sem nenhuma explicação, sem direito de defesa. Coagiram as pessoas a assinar um documento onde elas confessavam a culpa pelo crime de entrar ilegalmente em Israel, sendo que nunca foi nosso objetivo entrar em Israel. Segundo os advogados de direitos humanos que nos acompanhavam, aquilo foi tanto uma interceptação ilegal, um crime de guerra, como uma prisão ilegal e uma deportação ilegal também. Então que era o nosso direito não assinar uma uma assunção de culpa sobre aquilo. A gente manteve a decisão de não assinar, exceto quatro pessoas que a gente avaliou que era importante que saíssem primeiro para contar a história ao mundo.

Agência Brasil: No momento da interceptação, quando as forças de Israel entraram na embarcação, como vocês se sentiram e como reagiram?
Thiago Ávila: A tomada do barco foi um momento de tensão, porque numa situação assim, 15 anos atrás, eles assassinaram dez dos nossos participantes. Eu treinei aquelas pessoas em relação à melhor chance que a gente teria de sair vivo de uma situação de interceptação. Dentro do barco, eu era o responsável por garantir que as pessoas tomassem todas as medidas emergenciais em caso de ataque e de manter todo mundo nesse foco de que não importa o tamanho da crueldade da violência que eles usem, a gente vai se manter com uma missão não violenta. E a gente conseguiu fazer isso com sucesso.

Eles [forças israelenses] são muito violentos. Como a gente desescala uma situação assim, como não fazer nenhum movimento brusco, como não tentar impedir a tomada deles do barco? Nós éramos um barco humanitário de 12 pessoas. Aquela força, a S13 [Shayetet 13] das forças especiais de Israel, é uma unidade que estava ali com pelo menos 80 soldados fortemente armados, com equipe de apoio e equipamento militar. Não tinha [possibilidade de] vitória militar para a gente, nem era a nossa intenção. Tudo o que a gente queria era não ser assassinado naquele momento.

Eles aproveitaram essa oportunidade para filmar e dizer que estavam sendo cordiais com a gente. Quando estavam gravando, eles de fato falavam palavras cordiais. Na hora em que entregavam água e comida, filmavam para parecer que estavam cuidando daquelas pessoas, que na verdade estavam sendo sequestradas. Mas, logo atrás de quem estava filmando, estavam os fuzis. Era uma manobra publicitária que pode enganar quem vê as imagens, mas quem estava vivendo a situação sabe muito bem o que é a coerção de um sequestro por uma unidade de forças especiais que é reconhecida por crime de guerra.

Agência Brasil: Como foi o período em que você estava detido, como era tratado nas dependências da prisão?
Thiago Ávila: Na unidade prisional de Ayalon, onde eu estava na solitária, era uma equipe mais violenta, eles me jogavam na parede e falavam: 'Bem-vindo a Israel', quando eu cheguei. Eles usavam algemas nas mãos e nos pés e fechavam o máximo para travar a minha circulação propositalmente. A condução dentro da unidade prisional era aos empurrões e pontapés. Mas isso é pouco perto do que o povo palestino passa nas prisões. Tem mais de 10 mil presos palestinos na região da Palestina histórica ocupada, entre eles mais de 400 crianças, muitos deles passando por torturas e violências terríveis.

A água era imprópria para o consumo, as camas e o ambiente das celas estavam infestados de insetos e percevejos, que deixam marca nos corpos das pessoas, policiais e agentes carcerários a todo instante entravam para privar as pessoas de sono e para que não conseguissem descansar. Batiam portas, faziam muito barulho, tentavam intimidar e praticar violência psicológica para que as pessoas entrassem em crise naquele processo, diziam que a gente ia ficar por semanas lá, diziam que a gente não ia sair mais. Foi uma sensação horrível estar naquela situação.

Agência Brasil: O que você fazia durante o tempo na cela solitária?
Thiago Ávila: O tempo passa diferente em um confinamento total. Eu cantava, eu assoviava e conversava com as pessoas que estavam no corredor. Eu estava na cela oito, tinha outras sete celas ao meu lado, naquele corredor escuro em que eu ficava ouvindo gritos e barulhos de agressões, não conseguia identificar exatamente o que que era. Duas daquelas sete pessoas falavam inglês e as demais falavam árabe. Comecei a conversar com elas gradativamente, e as pessoas ficaram encantadas com a história da viagem e com a missão. No meio daquele ambiente horrível, a gente vê que tem vida. E que o povo palestino é essa fonte de vida.

Teve um que perguntou de que cidade eu era, eu falei que era de Brasília e eu perguntei 'e você?'. Ele falou: 'Sou da Etiópia'. Eu perguntei: 'Mas você é de qual cidade? De Adis Abeba?'. E ele ficou superfeliz, ele falou: 'Ninguém sabe a capital do meu país'. Eu falei que admirava muito o país dele, porque a história da Etiópia é linda no sentido da resistência contra o colonialismo, contra a opressão. Os agentes carcerários dessa unidade prisional da solitária eram muito violentos, mas teve um jovem negro que, depois que teve essa conversa sobre a Etiópia, ele foi na minha cela falando baixo e me agradecendo. Falou 'a minha família também veio da Etiópia, eu sou judeu sefardita e sofro muita opressão e preconceito aqui em Israel, sou tratado como um sujeito de segunda categoria aqui, mesmo sendo judeu'.

Agência Brasil: Fora da mídia e das redes sociais, há milhares de prisões de palestinos, como você comentou. Como a missão pode ajudar em relação à situação de palestinos presos injustamente em Israel?
Thiago Ávila: Nesse ponto, a missão foi bem-sucedida por trazer consciência às pessoas sobre violações que o povo palestino sofre, essa situação dos presos políticos palestinos é muito importante. O que a gente passou é uma pequena fração do risco, do dano, das violações que o povo palestino passa. O povo palestino denuncia há décadas que Israel pratica violações de direitos humanos diversas com as pessoas nas cadeias, existem centros de tortura com violência sexual, com assassinatos extrajudiciais. É um estado colonial que se estruturou em um [regime de] apartheid , que utiliza leis ditatoriais, de segregação, onde jovens palestinos são julgados por cortes militares e crianças com menos de 14 anos podem sofrer detenções administrativas sem direito à defesa, sem ter sequer uma acusação formal.

Esse estado comete uma série de violações e uma missão como essa joga luz a essa realidade. Infelizmente, é uma realidade de praticamente qualquer família palestina já ter tido alguém encarcerado ou em prisão administrativa ou julgado por cortes militares e condenado. É um povo que vive sob uma terrível e cruel ditadura que ainda se fantasia de uma democracia naquela região. Ali é um exército de ocupação que se trata enquanto estado, mas utiliza as mesmas regras de qualquer exército de ocupação no mundo em processo de saque e pilhagem colonial, de genocídio e limpeza étnica. O povo palestino, infelizmente, enfrenta isso com o seu próprio corpo, com a sua resistência. Muitos palestinos fazem greve de fome, tentam denunciar ao mundo, mas têm pouco alcance, poucos ouvidos dispostos a ouvir.

Agência Brasil: Você denunciaram que a Flotilha da Liberdade sofreu um sequestro e eram reféns de Israel. Você avalia que esses presos da Palestina também podem ser considerados reféns?
Thiago Ávila: Sem dúvida nenhuma, a gente trata como reféns e avalia que o que acontece na Palestina é um genocídio, não é propriamente uma guerra. Israel não apenas nega o mais básico das relações militares, como executa essas pessoas nas prisões e nega o acesso das famílias aos seus corpos. Eles negam qualquer tipo de acesso a essas pessoas. Então, sim, a gente trata como reféns e a gente trata como pessoas que têm todo o seu direito à dignidade violado e que merecem ser retiradas daquela situação.

Para nós, todo sujeito, povo originário de um país, que está dentro de um cárcere de uma força colonial é um preso político. Porque a colonização é um crime político, sobretudo. É uma decisão de um império ou de uma entidade colonial de se achar superior a um outro povo e tentar dominar aquele povo. O povo palestino, como um todo, sofre há oito décadas um genocídio e uma limpeza étnica, são 18 anos de um bloqueio ilegal sobre Gaza e um ano e nove meses de um genocídio que escalou violações inimagináveis, em que crianças estão sendo mortas de fome todos os dias, em que hospitais, escolas, abrigos, bairros residenciais inteiros estão sendo varridos do mapa, sendo explodidos.

Agência Brasil: Gostaria que você contasse um pouco sobre sua motivação em partir nessa missão humanitária e da sua história em relação à Palestina.
Thiago Ávila: Eu tenho 38 anos, dos quais 20 eu dedico ao ativismo. Eu acompanho a causa Palestina há 20 anos e tento ser um bom aliado, levar informação, colaborar em mobilizações, fazer articulações entre pessoas para que mais gente se una a essa causa. Eu já estive em todos os países da região, já tentei entrar em Gaza por todas as regiões, já estive na Palestina histórica ocupada em 2019. Vi de perto que é o estado colonial de apartheid , vi a violência na Cisjordânia ocupada, vi a violência nos territórios ocupados em 1948, as vilas apagadas do mapa, onde só tem as ruínas hoje. Eu vi as marcas de fuzis, eu vi a narrativa e a educação colonial que tenta desumanizar o povo palestino, apagar a história deles do mapa.

Eu me tornei coordenador da Flotilha por acreditar que é uma das ações mais bonitas e inspiradoras que eu já vi na vida. Lembra o processo de independência da Índia, onde táticas não violentas são usadas contra uma força opressora terrível e, mesmo assim, são bem-sucedidas. Mesmo quando não alcançam o objetivo exatamente, elas mobilizam um setor totalmente novo da sociedade, que nunca pensou que estaria se movimentando politicamente e se movimentando em solidariedade a um povo. A Flotilha fez exatamente isso: pessoas do mundo inteiro que nunca pensaram que iriam para a rua num protesto, simplesmente não aguentam mais ver crianças sendo mortas de fome, hospitais, escolas e abrigos sendo bombardeados, crianças sendo queimadas vivas, decapitadas por bombas. A Flotilha foi um um chamariz para as pessoas verem que tem saída, tem solução, se a gente se unir. Foi assim que o apartheid da África do Sul foi derrotado também.

Eu decidi ser parte da Flotilha, como um aliado da causa palestina, por entender que o destino do povo palestino muito provavelmente vai ser o destino de toda humanidade. Nós, que estamos no Sul global, no Brasil, também somos alvo da ganância de quem quer tomar a terra e os bens comuns da natureza. O Brasil tem um sétimo da água potável disponível em forma líquida do mundo. O Brasil tem a maior floresta do mundo, o maior rio do mundo. A gente tem tanta riqueza sob o nosso solo e na nossa biodiversidade que já é alvo do imperialismo de diversas maneiras. A gente precisa esperar o genocídio acontecer aqui para a gente agir?

Agência Brasil: Vocês pretendem fazer novas missões humanitárias com destino à Faixa de Gaza?
Thiago Ávila: A Flotilha tem o lema “Quando os governos falham, nós navegamos”, e nós navegaremos enquanto a Palestina não for livre. Sim, temos uma nova missão, vamos continuar tentando romper o cerco ilegal de Israel sobre Gaza, levar alimentos e medicamentos e abrir um corredor humanitário dos povos. Para nós, enquanto tiver crianças morrendo de fome em Gaza, essa é a missão fundamental. Já temos um novo barco chamado Handala, ele está quase pronto para ir.

Estamos tentando arrumar novos barcos para uma missão maior dessa vez. Queremos que seja sempre assim: se Israel atacar uma missão nossa, que saiba que a próxima missão será maior. E que eles entendam que a violência não vai nos parar.

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